Era vergonhoso assumir este acontecimento, principalmente aos meus pais. Os fatos ocorreram na Itália e depois de uns meses, após ter retornado ao Brasil, em meados de 2013, frequentei sessões coletivas de terapia em uma sala dentro de uma Delegacia da Mulher no centro de São Paulo.
Hoje, o que vivi me moldou. Lembro-me das mulheres naquela roda em sessões com mandala ou sessões com maquiagem ou sessões de relatos íntimos. Muitas continuavam com os agressores, outras muitas tinham filhos menores, outras estavam grávidas, algumas não trabalhavam e dependiam inteiramente do agressor, outras estavam em abrigos, outras eram ameaçadas e frequentavam as sessões às escondidas, outras estavam na casa dos pais os quais eram resilientes com os agressores.
Naquela roda eu me sentia uma garota de sorte, apesar de meus relatos serem extremamente fortes e pesados, eu estava viva, na casa de meus pais – no Brasil, recebendo amor, sem filhos. O único trauma que eu tinha que carregar e trabalhar era o meu.
Passados uns anos, comecei a fazer projetos para palestrar sobre violência doméstica, feminicídio, Lei Maria da Penha e conexões com o Código de Processo Penal. Como dizem, faça do limão uma limonada. Contudo, foram anos muito sombrios e levei mais de um decênio para me recuperar dos traumas sofridos. Ainda visualizo consequências, mas com impacto menor. Antes eu sobrevivia. Hoje eu vivo.
Assim, concretizei meu objeto de pesquisa no aumento de casos de violência doméstica em um período – cujo foi atualizado para este artigo – especialmente na América Latina, incluindo o Brasil, a partir de 2015.
Apesar da Lei Maria da Penha ser de 2006, foi a partir de 2015 que dados mais concretos sobre violência foram computados e segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), tanto os casos de violência doméstica quanto de feminicídio cresceram exponencialmente.
Somente em 2015, foram registrados cerca de 63 mil casos de estupro, muitos dos quais ocorreram em ambiente doméstico. Já, em 2024, sempre segundo a FBSP, esse número ultrapassou 74 mil.
Na última década, o aumento de denúncias de violência doméstica aumentou gradualmente por fatores como maior visibilidade nas mídias, proporcionadas por uma maior conscientização social; melhor acesso a canais de denúncia; ampliação de legislações protetivas (tais quais a Lei Maria da Penha e suas medidas cautelares).
Apesar do aumento dos registros, muitos casos ainda não são denunciados, especialmente em regiões periféricas e comunidades vulneráveis. Fatores socioeconômicos como dependência ou instabilidade financeira, desemprego, medo de retaliação e falta de políticas públicas integradas (assistência social, jurídica e psicológica), desinformação sobre direitos e canais de denúncia continuam sendo barreiras. Além disso, há fatores estruturais associados, como a normalização cultural da violência em certos contextos por conta da cultura patriarcal enraizada.
Tá achando ruim? Tudo pode piorar.
Na época da pandemia do COVID-19, entre os anos de 2020 e 2021, por conta do lockdown e convívio forçado, houve um aumento entre 20% e 50% dos casos de violência no mundo, tanto que a própria Organização das Nações Unidas (ONU) classificou a violência doméstica como a "pandemia silenciosa". Isso porque aumentou o controle do agressor e reduziu o acesso da vítima à uma rede de apoio. A coisa estava tão degradada que em 2022, no Brasil, a cada 2 minutos, uma mulher foi vítima de violência doméstica.
Voltando no ano de 2015, no Código Penal, o crime de feminicídio foi tipificado como uma circunstância qualificadora do homicídio, definindo-o como o assassinato de uma mulher “por razões da condição de sexo feminino”, especialmente em casos de violência doméstica e familiar, ou oriundo do menosprezo ou discriminação à condição do ‘ser mulher’. Além disso, o feminicídio passou a integrar a lista de crimes hediondos, implicando penas mais severas e regras mais rigorosas de cumprimento de pena.
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Violência Doméstica | Créditos: ChatGPT |
Aqui também vou lhe mostrar alguns dados oriundos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública: entre 2015 e 2024, foram registrados oficialmente 11.859 feminicídios no Brasil, evidenciando a persistência da violência de gênero. Já, em 2024, a cada 17 horas, uma mulher foi vítima de feminicídio, dos quais 75,3% dos crimes foram cometidos por pessoas próximas, como parceiros ou ex-parceiros.
Infelizmente, o Brasil segue entre os países com maior número absoluto de feminicídios no mundo. Fora isso, traz consigo muitas consequências como os altos custos para o sistema de saúde; a falta de produtividade, impactando diretamente no mercado de trabalho; aumento de gastos públicos com segurança, dependência por subsídios e justiça; aumento da perda do próprio capital humano, desestabilizando econômico e psicologicamente inteiras famílias e entregando – muitas vezes – os filhos das vítimas nas mãos de um sistema ineficaz e incompetente.
Por último, gostaria de salientar que a violência doméstica não destrói somente a vítima. Destrói tudo o que está ao seu redor. A maior consequência de uma sobrevivente – e eu coloco-me em primeira pessoa – é o fator psicológico. Não há cura plena, pois não há como esquecer. Permanecem o medo, a tendência ao isolamento, a dificuldade de reintegração, a dificuldade de se relacionar intimamente novamente, a busca constante por conflito, a necessidade de ter sempre aquela adrenalina viciante pulsando dentro de si... Nunca o ditado “a melhor defesa é o ataque” foi tão coerente.
Eu sou uma sobrevivente. Carrego cicatrizes, mas estou de pé e uso a minha história para acalentar outras sobreviventes. Eu consegui e, hoje, eu vivo.
Giselli Oliva
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