Quem já sofreu algum tipo de violência física ou psicológica e conseguiu se desvencilhar certamente já deve ter recebido a pergunta “nossa, mas por que você não saiu antes dessa situação?” ou “nossa, mas por que você ficou tanto tempo assim?” ou “nossa, mas por que você não pediu ajuda antes?” ou “nossa, mas como você não percebeu antes que ele(a) era violento(a)?” ou “nossa, mas como você conseguiu ficar com ele(a) tanto tempo sabendo que era tóxico(a)/ violento(a)?” ou “nossa, mas como você se deixou enganar assim?” ou “nossa, mas você é tão inteligente e como caiu nessa?” e muitas outras nesse mesmo estilo.
Gerado por IA | CanvaEscutar essa linha de questionamento de uma pessoa sem estudos para gerir vidas com tais perplexidades pode até ser razoável. Contudo, é gravíssimo escutar esse tipo de questionamento proveniente de um profissional da saúde (psicólogos, psiquiatras, psicanalistas e terapeutas) e de gestão de pessoas.
É inconcebível a falta de preparo, de ética, de tato, de empatia e, como se ousa dizer, de noção em perguntar à vítima esse tipo de coisa.
Para início de conversa, deve-se entender que essa pessoa é a VÍTIMA. Com isso, é importante entender o significado de “vítima”: “(...) pessoa ferida, violentada, torturada, assassinada ou executada por outra (...) que é sujeito à opressão, maus-tratos, arbitrariedades (...) pessoa que sucumbe a vício ou a um sentimento próprio ou de outrem (...) quem ou que sofre algum dano ou prejuízo (...) sujeito passivo de ilícito penal (...)”. Portanto, geralmente, a vítima é aquela que experimenta ferimentos, perdas ou infortúnios como resultado de um ou mais eventos.
Quando você entra em uma relação violenta (e não somente tóxica), as pessoas que são colocadas para lhe ajudar devem ter muito mais tato para conseguirem lhe direcionar. Não digo que lhe devem colocar em perene condição de vitimismo. Nem isso é tão pouco saudável. Mas a ética em lidar com pessoas consideradas vítimas vem da empatia e do reconhecer que cada um tem suas razões, motivações e limitações. Cada um tem ou teve uma história que deve ser extremamente respeitada. Cada um tem ou teve uma história que o amputou em certo modo. A transformação é estritamente individual. A transformação é gradual. A vítima não pode e não deve estar todo o tempo se justificando por estar ou ter estado em um círculo vicioso.
A minha transformação levou uns 10 anos. Foi gradual, cheia de traumas, medos, receios, cheia de raiva, de ódio, de tristeza, de culpa, muita culpa. Mas em um momento muito especial ocorreu o meu divisor de águas, a minha redenção.
Em passado, essas perguntas não me incomodavam. Todavia, atualmente, com uma certa experiência e com um olhar mais crítico versus os profissionais e versus a própria situação de violência, sinto-me frustrada por tamanha ignorância.
Entendo que a violência doméstica, apesar dos casos serem tão corriqueiros e estarem enraizados por conta da sociedade paternalista e machista na qual vivemos, seja um assunto ainda considerado tabu. Os números absolutos só aumentam a cada ano. A situação piorou durante a convivência forçada no período da COVID-19 e continua até os dias atuais em uma crescente. Por isso e por outras tantas razões, não pode ser mais um tabu. Não pode ser tratado com leviandade nem com simplicidade nem com desleixo.
Os profissionais devem se preparar melhor para enfrentar casos complexos como o da violência doméstica. A violência possui várias facetas e cada uma tem sua especificidade. Deve-se dar o tempo necessário para a vítima se abrir, e cada um tem o seu. Perguntas acusatórias, como se o que aconteceu ocorreu por culpa dela, é um sacrilégio e extrema falta de profissionalismo.
Eu já me senti acusada e julgada que, eu passei pelo que passei, por minha culpa, porque eu não me separei dele, porque eu não o denunciei antes, porque eu não saí de casa, porque eu não me abri com alguém, porque eu não contei para os meus pais, porque eu não mudei de cidade, de estado, de país. Conclusão: a razão por eu ter enfrentado um relacionamento violento tinha uma única culpa: a de eu não ter sido capaz, inteligente, esperta e perspicaz o suficiente de não ter saído dele.
Parem de ser idiotas, obtusos e desrespeitosos. Já é hora de tratar a vítima como vítima e aguardar que suas feridas tornem-se cicatrizes. Já é hora de termos protocolos de comportamento e discurso estabelecidos para lidar com isso. Já é hora de ensinarem métodos de approach e saberem que a vítima de violência não enxerga que é a vítima. A vítima de violência acha que é a causa de todos os problemas pelos quais está passando. A vítima é acusada diariamente de algo. Ela não precisa de outra culpa vindo de fora, principalmente de um profissional que está para ajudá-la, acolhê-la e escutá-la.
Portanto, sejamos mais sensatos ao lidar com pessoas que sucumbem e se submetem a este tipo de realidade. Saibamos que podemos nunca resolver o problema delas, que talvez nunca conseguiremos fazê-las esquecer o que passaram, mas, sim, podemos ter nossa sensibilidade mais aguçada, saber abraçá-las, escutá-las e fazê-las saber que não estão sozinhas.
E lembremos: o grito de uma vítima é um silêncio ensurdecedor, e esse silêncio é um alarme.
Giselli Oliva
Para contato e palestras:
personnelcahier@gmail.com
0 Comentários